fevereiro 27, 2007

Conclusão

"Não se fazem mais games como antigamente" é uma frase que todo mundo já ouviu inúmeras vezes. Tirando o sentimento de nostalgia que faz tudo que é antigo parecer melhor na nossa lembrança, a frase faz algum sentido? Os jogos antigos eram realmente melhores mesmo com gráficos muito mais limitados? Melhores em que?

Em seu texto sobre o poder da sugestão o amigo Alexo da Benzaiten nos dá uma boa dica da resposta, e lembra que na época dos primeiros computadores pessoais as telas eram tão complexas quanto um ícone dos nossos desktops atuais, e mesmo nesse mundo tosco de caracteres ASCII bicolores vimos o surgimento de muitos games memoráveis.

Scott McCloud tem uma teoria que diz que a "simplificação" gera "amplificação", ou seja, quanto mais cartunizada ou iconizada é uma imagem, mais significados subjetivos podemos dar a ela. Enquanto um rosto detalhado representa uma pessoa específica, um rosto composto por dois pontos e um traço representa todas as pessoas do mundo. Consequentemente uma imagem mais simplificada nos provoca maior empatia, há maior chance de nos identificarmos com ela (e pelo mesmo motivo as tentativas de alcançar o realismo pleno caem no vale da estranheza).


McCloud fala especificamente sobre quadrinhos, mas podemos perceber o fenômeno também nos videogames, um bom exemplo é o Adventure, um de meus jogos favoritos. Nele o protagonista é representado apenas por um quadrado, e isso deixa aberta a possibilidade de interpretação: ele pode ser tanto um cavaleiro, um soldado, um ninja espacial ou qualquer outra coisa que faça sentido para mim. Não especificar exatamente o que estamos vendo nos obriga a participar e completar o que está faltando, torna a obra mais interativa e, portanto, mais divertida. (Eu já argumentei por que acredito que a interatividade está intimamente ligada a diversão neste post.)

Essa ausência de informações visuais é na verdade um dos grandes argumentos dos que defendem que os livros são sempre melhores que suas adaptações em filme, porque a literatura deixa muito mais espaço para a interpretação pessoal do que o cinema.

Muitos jogos do Atari continham protagonistas abertos para interpretações pessoais, pois existia uma grande limitação no número de pixels. Mas este efeito não é exclusividade de jogos antigos, Daniel Galera aponta a história de Jade de Beyond Good and Evil, que é uma personagem totalmente tridimensional mas ainda assim ambígua, gerando uma dezena de interpretações diferentes sobre sua origem. Não saber com certeza se Jade é asiática, latina ou afro-descendente permite que um número maior de pessoas se identifique com ela.

Por trás disso tudo existe uma idéia muito usada na literatura, no cinema, nos quadrinhos e em outras formas de arte: a conclusão.

Parente das teorias de percepção visual da Gestalt, a conclusão é explicada por McCloud em Desvendando os Quadrinhos, um livro essencial para quem quer estudar qualquer área relacionada com linguagem visual. Em resumo, McCloud diz que muitas vezes só precisamos ver uma parte para entender o todo: se no primeiro quadrinho alguém se aproxima de uma porta e no quadrinho seguinte a pessoa está dentro da casa, concluímos todas as ações intermediárias como girar a maçaneta, abrir a porta, entrar etc. O mesmo acontece o tempo todo no cinema com os cortes entre as cenas, todas as ações não mostradas na tela são concluídas automaticamente por nosso cérebro, que completa as lacunas.

Apesar da relação direta entre a conclusão e os gráficos simplistas de gerações passadas, muito jogos recentes usam o mesmo conceito, somando a isso os gráficos elaborados que a tecnologia de hoje proporciona. Com isso é possível deixar a obra aberta para que o jogador faça parte dela, e torná-la realista o suficiente para ludibriar nossos sentidos (e facilitar a suspensão da descrença).

Um exemplo é Shadow of The Colossus, o jogo que todos os que estudam games não cansam de comentar. Na história não sabemos qual é a relação entre o protagonista e a mulher que ele tenta ressussitar, quem ou o que são exatamente os Colossi, ou o que representa o surpreendente e trágico final do jogo. Cabe ao jogador interpretar e concluir sobre a narrativa.

O jogo The Sims 2 é também um grande exemplo, existe simplificação não só no nível visual, que podemos perceber na aparência dos personagens e em seus movimentos estilizados, mas também no nível sonoro. O Simlish, língua falada pelos personagens do jogo não passa de um amontoado de sons desconexos criados a partir de uma grande mistura de línguas, e a ausência de sentido é o que torna possível a criação de narrativas por parte do jogador, que imagina por conta própria o teor dos diálogos.

Talvez seja por causa do conceito da conclusão que algumas pessoas acreditem que os jogos de sua infância eram melhores que os jogos de hoje. Éramos obrigados a dar sentido aos quadradinhos amontoados na tela, e obviamente imaginávamos o que parecia ser mais divertido. Tentar adivinhar o que cada imagem representava inclusive tornava a brincadeira mais interessante. De uma certa forma, a simplificação amplificava a experiência. Mas como visto nos exemplos acima, e existem muitos outros, a conclusão é uma idéia inerente aos videogames, sejam eles antigos ou novos.

7 comentários:

Breno Augusto Cruz Faria disse...

Sou apaixonado por jogos, tanto criação quanto play, e até agora, pra mim, esta foi a melhor idéia do "por que os jogos eram melhores antigamente".

Parabéns.

André Carita disse...

Viva Lucas,

Este seu artigo vai de encontro a um artigo que publiquei na revista mensal especializada em videojogos a Mega Score, onde faço um paralelismo entre Pong e Top Spin, baseando a minha argumentação no conceito de iconicidade. Já desde jogos como Pac-Man que o seu criador Toru Iwatani referiu que a simplicidade da personagem principal era uma espécie de convite ao jogador de "moldar" as restantes características fisicas de Pac-Man a seu bel-prazer.

Um jogo como Pong, com um grau de iconicidade bem mais reduzido do que Top Spin, é caracterizado por uma estética pouco motivada (ilustração de um jogo de ténis) que implica um exercício mental bem mais acentuado por parte do jogador.

Eu acho que não se pode afirmar se os jogos antigos sao superiores ou não aos jogos mais recentes. O que podemos afirmar é que todo esse processo de negociação mental é hoje em dia cada vez menos exigente!

Gostei do artigo e em breve disponibilizarei o meu artigo da Mega Score num post ainda este mês!

Um abraço!
André Carita
http://pensarvideojogos.blogspot.com

Lucas Haeser disse...

Valeu Breno.
Obrigado Carita, estou curioso e ansioso pelo artigo que você escreveu, parece muito interessante.

Abraços!

Alexandre Maravalhas disse...

Excelente complemento do meu modesto falatório, na Benzaiten!

Fiquei com vontade de ler 'Desvendando os Quadrinhos', livro que volta e meia eu acabo focando quando vou nas lojas.

E, apenas reforçando, como já quis justificar no post anterior, não só os jogos pareciam mais "criativos" (desbravadores), mas também os jogadores para "completar as lacunas"!

abraço! Alexo

Hugo Cristo disse...

Grande Lucas,

Gosto dessa discussão especialmente porque discordo da proposta de que "simplificação" gera "amplificação".

Esse tipo de raciocínio esquece que o cérebro sugere e preenche lacunas sim, mas apenas com aquilo que já conhece. Em outras palavras, mesmo em jogos extremamente realistas, há outras lacunas a serem preenchidas por cérebros cada vez mais (e não menos) amplificadores.

John Maeda, que vem defendendo criteriosamente o tema, sugere que 'a simplicidade é obtida através de uma redução conscienciosa', mas ao mesmo tempo diz que 'mais emoções é melhor do que menos'. Na minha opinião, a simplicidade dos jogos antigos não é gráfica, mas conceitual: eram mais fáceis de aprender, e conforme também sugere Maeda e todos os psicólogos vivos e mortos, a aprendizagem torna as coisas mais simples. Pitfall era excitante num mundo povoado por Indiana Jones, porém deve ser monótono em tempos de Neo e Agente Smith.

Certamente o domínio do conceito do jogo permite preencher lacunas e enxergar coisas que não estão ali, mas eu acho que nesse aspecto os títulos MUITO simples (pong, pac-man & afins) não possuem muito espaço para serem 'completados', a não ser graficamente. Por outro lado, vejo que produções mais recentes incorporaram teorias das artes e multimídia em relação à indeterminação (interatividade) e criação de discursos próprios (narratividade). Vale a pena checar esse livro.

Nesse ponto os jogos atuais são muito melhores que os antigos por razões práticas - antes era impossível oferecer tais recursos por limitações de memória, processamento e mesmo conceituais. Imaginem então que as crianças de hoje crescem completando tanto imagens quanto conceitos extremamente mais complexos que nós completamos, e provavelmente fazem conexões e associações que não concebemos e, justamente por isso, achamos pouco interessantes ou limitadas de possibilidade.

A analogia entre filmes e livros é boa, mas ela peca justamente no entendimento das limitações: o filme é um formato definido, com hora pra começar e acabar, orçamento fechado etc, realmente mais limitado que o livro. No entanto, o filme não é a materialização do livro, mas do roteiro, uma adaptação que concretiza a história se utilizando de elementos localizados em um determinado momento sócio-histórico. Se o filme pudesse se atualizar, a cada exibição, com as mesmas referências no tempo e espaço que o livro, certamente seria muito mais rico e interessante, talvez até comparável ao original.

Acho que na verdade minha dificuldade em concordar que simplificação gera amplificação tem a ver com a confusão que fazemos entre forma e conteúdo. Acho que realmente simplicidade conceitual (o conteúdo do jogo) deixa margem para abertura, mas a simplicidade nos gráficos (a forma) trabalha na direção oposta, minando o conceito.

Um exemplo: é necessário enxergar, sem dúvidas, que o Mario começa pequeno, mas encontrando ítens reconhecíveis como um cogumelo, uma flor de fogo ou uma estrela mágica, pode crescer, aumentar seus poderes e transformar a experiência do jogo.

No entanto, o desenho da flor, do cogumelo e da estrela não precisam ser realistas pois se tiverem o que realmente importa (segundo Maeda, quando se tira o óbvio e se acrescenta o significativo) para o reconhecimento da forma, aí sim o cérebro que já aprendeu o que é uma estrela, cogumelo e flor (tanto no mundo quanto no jogo) completa as tais lacunas.

Nesse sentido, eu concordo que a simplificação amplifica a experiência. Mas insisto na idéia de que esse processo tem mais a ver com o conceito do que com a forma.

Abraços e parabéns, o blog é de uma simplicidade fenomenal ;)

Lucas Haeser disse...

Alexo, como eu disse, Desvendando os Quadrinhos é leitura obrigatória, se tiver a oportunidade vá atrás do livro! =)

Hugo, obrigado pela sua iniciativa e pelo trabalho de escrever uma mensagem dessas, ainda mais para discordar. É muito importante ouvir outros pontos de vista e discutir.

Apenas para deixar claro, não defendo que os jogos antigos são melhores, apenas tento apontar um motivo possível para muitos pensarem dessa forma.

Inclusive eu concordo com muito do que você disse, sobre os jogos atuais trazerem novos conceitos muito mais complexos que talvez nós, como imigrantes digitais, não conseguimos compreender direito.

Não conhecia o livro do John Maeda, fiquei muito interessado. Simplicidade conceitual também é uma forte característica de jogos antigos sim, mas aí está Katamari Damaci para mostrar que a simplicidade também pode aparecer nas novas gerações.

Discordo de você quando diz que jogos MUITO simples como pong, pac-man e afins não possuem profundidade além da questão dos gráficos.

Quem é pac-man? Por que pac-man está condenado a viver em um labirinto? O que ele come? Por que ele é perseguido por fantasmas? Tudo isso são questões simples e sem resposta que podem muito bem gerar narrativas subjetivas. E muito disso se deve à falta de informações, visuais ou não, que podem despertar a imaginação do jogador de uma forma que poucos meios de comunicação conseguiriam.

Sobre "Multimedia: From Wagner to Virtual Reality", conheci nas aulas de hipermídia. Ali existem algumas idéias que abriram minha mente. Ótima indicação!

Não sei se consegui entender direito sua divisão entre a forma e conteúdo no cogumelo do Mario. A forma é definida pelo criador seguindo o vocabulário visual do universo do Mario. No meu entendimento, ele não é realista (e nem deveria) porque funciona como um ícone carregado de um significado novo e exclusivo para a mecânica do jogo.

Acho que estamos falando a mesma coisa de formas diferentes.

Obrigado pelo elogio. Um abraço!

Hugo Cristo disse...

Lucas,

Quando disse que jogos simples não possuem profundidade conceitual, estou sugerindo esse argumento como designer: falamos de um sistema pensado para ser aquilo e nada mais. Uma cadeira pode ser uma péssima escada para se trocar uma lâmpada, mas isso definitivamente não é problema do designer.

Pensar que o pac-man é um anorexo condenado a passar a eternidade em um labirinto de guloseimas assombrado pelo fantasma do professor de ginástica é uma interpretação válida, mas não está no projeto. Quando falo em simplicidade conceitual, estou falando no que foi conceituado, planejado, projetado pelos autores do jogo. Nesse sentido, reafirmo que jogos como pac-man não possuem uma abertura intencional para que o usuário preencha as lacunas.

Recuperando a questão do Mario, acho que conseguirei ser mais claro. O cogumelo não é do vocabulário visual do jogo, mas do mundo, e é só por isso que ele pode ser simples. Seguindo seu raciocínio peirciano eu não consigo ir muito longe na discussão porque não vejo o cogumelo como um ícone (ou hipoícone). O cogumelo, a flor e a estrela são como letras de um alfabeto construindo frases do discurso do jogo. Ainda que você conheça a forma de cada um, o que vale é o valor e sentido no contexto. O cérebro se aproveita da nossa capacidade de reconhecer a forma, mesmo simplificada, para compreender o resto que pode ser muito mais complexo. Eu nem sequer acredito no novo e exclusivo de nada. Vivemos no mundo das sobreposições, dobras, colagens e afins.

É nesse ponto que amarro minha proposta de que jogos antigos são mais limitados: ainda que a simplicidade formal não seja um problema para o entendimento do jogo, a simplicidade conceitual que normalmente acompanha a lógica do jogo não permite aberturas muito grandes.

Um outro exemplo, pra explicar meu ponto de vista (extremamente ligado ao desenvolvimento cognitivo, diga-se de passagem):

1) O conceito dos jogos antigos é como a mente de uma criança de 5 anos e os gráficos seriam as vogais que ela domina. É possível inventar um pouco, mas há a falta de repertório para desenvolver efetivamente um discurso articulado. Por outro lado, pensando nas interpretações subjetivas que você sugere, eu poderia usar o exemplo de um adulto usando as mesmas vogais, que iria bem mais longe. A possibilidade está na mente do adulto (conteúdo) e não simplicidade das vogais (forma).

2) Já nos jogos modernos, acredito que teríamos munido, intencionalmente, tanto crianças quanto adultos de um alfabeto completo, gramática fluente e tudo mais. O exemplo do seu jogo que eu não conhecia (Katamari) é excelente mas eu nem iria tão longe. Um MUD comum demonstra o quanto simplicidade formal pode ser extrapolada pela complexidade conceitual.

Eu entendi que seu post não mostra uma opinião pessoal. Acho que estamos do mesmo lado: o dos caras que adoravam jogos onde um atira e o outro morre, e que hoje sofrem um pouco com a necessidade de escrever um tratado e apertar trocentas teclas para "andar" no jogo. Mas certamente esses jogos não são pra nós.

É como dizia o Pierre Lévy: a inteligência coletiva é uma revolução, mas só para aqueles que resolvem assumi-la. Jogávamos solitários em casa, sem manual, sem gamefaqs.org ou EGM. Hoje o moleque assiste um teaser na Web que tem uma senha escondida pra abrir não-sei-o-que dentro do jogo que só será lançado ano que vem.

Viva River Raid!

Abraços a todos e desculpem-me pelo post donkey kong!